“Quando estás a surfar não estás ativamente a pensar, estás apenas presente, sem preocupações ou divagações.”
Publicado no dia 1 de Julho de 2023
António Jordão, Janito (João Carriço) , Zé Salgado, e João Girbal da esquerda para a direita.
Manteau, mais do que uma banda, representa um estilo de vida, uma ligação e um lema. A música que fazem é fantástica. Apesar de se sentir um pouco de nostalgia e tristeza nas suas músicas, estas são sempre acompanhadas pelo sentimento subjacente de que tudo vai ficar bem. Já lançaram dois EPs: Timequake (2022) e Farsa (2023), que foram ambos maravilhosamente produzidos pelo Gonçalo Bicudo. Estes colocaram-nos no radar, como uma das bandas emergentes portuguesas mais interessantes da atualidade.
No dia 29 de abril fomos muito bem recebidos pelos Manteau no seu estúdio, onde estivemos a conversar sobre a vida, equilíbrio, amizade, energia e respeito. Depois, fomos passear pelas ruas de Lisboa, que tanto influenciaram estes quatro. Nada vem do nada. Há muito trabalho, esforço, suor e lágrimas por trás desta sonoridade especial e única que os Manteau têm. Ao contarem a sua história, estão, de certa forma, a contar a história de todos os seres humanos. No final do dia, tudo faz sentido.
Recomendamos que tenham o Spotify dos Manteau aberto ao vosso lado enquanto leem a entrevista, para que possam ouvir qualquer uma das músicas mencionadas, se o desejarem.
Olá pessoal. Vocês conhecem-se em 2020 e pouco depois formam a banda. De que maneira é que o COVID influenciou os vossos primeiros meses de criação musical e ensaios?
João Girbal: O Zé estava a viver em Portugal sozinho porque os pais dele vivem na Suíça. O António e eu passámos muitas semanas em casa do Zé, que tínhamos conhecido há muito pouco tempo. Levávamos instrumentos connosco, e passávamos dias a fio a tocar e a cantar juntos. Nos primórdios da banda só improvisávamos e inventávamos.
Essa fase foi importante, porque como não tínhamos nada para fazer, passávamos muito tempo juntos. Foi nesses meses que começámos a aprofundar a nossa ligação e a tocar muito mais. Eventualmente, juntámo-nos com o nosso primeiro baterista e amigo, João Carvalho, e fizemos um primeiro ensaio muito especial no Nirvana Studios. A nossa primeira aparição ao vivo foi uma abertura de uma Jam, na qual tocámos quatro músicas nossas, um cover e ainda improvisámos um pouco.
Janito, foste uma adição recente à banda quando surgiu a necessidade de encontrar outro baterista. Como é que vocês se cruzaram?
João Girbal: O ano passado, devido a complicações de agenda por parte do João, por tocar bateria em diferentes projetos musicais, numa altura em que tínhamos muitos concertos marcados, vimo-nos obrigados a tentar encontrar outro baterista para tocar connosco. Lembrava-me vagamente que um amigo nosso chamado João Fragoso, nos tinha apresentado o Janito num concerto que fizemos no Cosmos. Arranjámos logo o contacto do Janito e convidámo-lo para vir ensaiar connosco.
Janito: O Fragoso perguntou-me se queria ir ver esse concerto ao Cosmos, e foi uma daquelas coisas que pensando em retrospetiva, podia muito bem não ter ido. Por isso, leitores, saiam de casa quando forem convidados para algo, mesmo que não vos interesse. Nunca se sabe o que é que pode surgir.
Lançaram o vosso 1º EP Timequake com o seguinte comunicado: “We hope you enjoy our first work together. These four songs kickstarted our friendship and allowed us to play live – and that was always the point.” Foi difícil encontrarem a vossa sonoridade como Manteau?
João Girbal: Ainda estamos a encontrar. Como não tínhamos um portefólio muito grande, optámos por fazer um EP, porque sentíamos que estávamos à procura do nosso som, do que é que queríamos tocar, de onde é que nos inseríamos e de como é que nós os quatro nos conjugávamos melhor. E continuamos a fazer essa busca e espero que assim seja sempre, porque não conseguimos, nem queremos definir o som Manteau como algo específico. Nós os quatro vimos de backgrounds musicais completamente diferentes e cada um tem a sua linguagem. Portanto, cada um foi dando o seu input, de forma a construirmos uma linguagem conjunta. Cada um de nós vai puxando um bocadinho para o seu lado e encontramo-nos ali num ponto comum que até agora tem sido o som Manteau, mas que naturalmente há de mudar.
“Neme Tangito” e “Always The Point” são músicas originais vossas que já tocaram em alguns concertos, mas que ainda não lançaram. Como é que escolhem que músicas é que vão lançar e quais é que vão ficar na gaveta?
António Jordão: Nós temos músicas que quando ouvimos a gravação inicial, que costumamos fazer com um telefone, pensamos que não dá para pegar nelas. Às vezes, há músicas nas quais pegamos e trabalhamos, mas ao fim de duas semanas, já nos esquecemos delas. Certas músicas ainda são tocadas em jams, ou em alguns concertos. O “Neme Tangito” foi tocado duas ou três vezes ao vivo e depois também passou a não fazer muito sentido, começou a haver dúvidas e “esquecemo-nos” dela. A “Always The Point” foi gravada com o intuito de pertencer ao Farsa, mas achámos que ainda não estava pronta. Se a música sobreviver, é trabalhada e eventualmente gravada, mas quando não sobrevive, fica ali perdida no éter.
Timequake significa “a disturbance in the flow of time”. Há um toque nostálgico, e quase infeliz na vossa música. Incomoda-vos que o tempo passe demasiado rápido, ou sentem-se parados no tempo?
João Girbal: Cada um terá uma resposta diferente. Por exemplo, se formos falar com o senhor António Jordão, incomoda-lhe que o tempo passe demasiado rápido, porque ele tem sempre uma urgência de viver. Até porque, por exemplo, ele vai para a cama e tem medo de ir para a cama, não quer ir dormir, quer que não haja sono para que possa continuar a viver. Eu acredito que o tempo passa demasiado rápido e olhando para o período do início da banda, parece que passou tudo muito rápido e que certas memórias dessa altura se apagaram.
Zé Salgado: O próprio COVID aconteceu na altura em que as músicas foram compostas e escritas. De certa forma, foi um Timequake geral para mundo. De repente, não sabes o que é que é está a acontecer, como é que o tempo está a fluir e como é que tu estás a evoluir porque não podes fazer as coisas que podias fazer antes. Timequake é também o título de um livro do Kurt Vonnegut, que conta a história de um personagem que, de repente, anda 20 anos para trás, tendo de viver a vida exatamente como a viveu, sem puder mudar o seu destino.
A vossa música “Lisboa Continua” foi escrita pelo vosso amigo Guilherme Afonso. Como é que surgiu essa colaboração?
António Jordão: Sempre foi normal juntarmo-nos em casa de um de nós e ficarmos lá três ou quatro dias a fazer música. Num desses retiros, em casa do Zé, numa fase inicial em que estávamos a fazer as primeiras músicas, em que não havia direção nenhuma, o Gui veio connosco e escreveu uns textos e ajudou-nos com as letras. Às tantas, num dos dias, já eram 5 ou 6 da manhã, eu queria ir dormir e ele pediu-me: “Por favor António, tenta só fazer alguma coisa com esta letra”. Tentei um bocado e não estava a sair nada, mas ele continuava a insistir para eu continuar a tentar. Às tantas, meio que inventei ali uma parte e comecei a cantar por cima. Quando olhei para o lado o Gui estava a chorar. Fiquei todo contente e ficámos a ver o nascer do sol. No dia seguinte mostrei a música a estes gajos e eles odiaram. Fui enxovalhado.
“Lisboa Continua” dos Manteau.
Filmado por João Salgado e Pablo Garrido.
O vosso próximo EP, Farsa, está quase a sair. “Passing through, passing through. Sometimes happy, sometimes blue. Glad that I ran into you”. Diriam que estes versos definem o Farsa?
Janito: No sentido geral de todos nós, definem tudo.
António Jordão: Eu acho que o Farsa vem de nós acharmos que ainda não conseguimos chegar ao conceito ou que ainda estamos à procura do som Manteau, e da direção certa. Estamos numa fase de experimentação e disso, saem coisas muito diferentes. Portanto, o nome Farsa foi ficando. Além disso, o Janito tinha uma marioneta em casa, que ajudou a consolidar a nossa abordagem ao EP.
Zé Salgado: Não sabemos bem qual é o nosso som, mas estamos a assumir que isto é uma farsa. Estamos a pôr esta máscara de que agora somos uma banda que faz um Dub, uma música como o “The March Of The Silver King”, ou uma “Funny Hand” que tem uma letra emocional e crua. Estamos a colocar máscaras diferentes, que não são falsas, são farsas, mas são verdadeiras para quem nós somos e para a música que estamos a fazer.
As músicas “Cepa Torta” e “Funny Hand” fizeram-me pensar sobre crescer e sobre as dificuldades que estão associadas a isso. Zé, na “Funny Hand”, tu terminas a música, com o que me parece ser um berro de desespero. Têm sentido na pele as dores de crescer?
Zé Salgado: A “Funny Hand” resultou de um texto que escrevi no ano passado. Houve uma noite no Cosmos, que era noite Tertúlia, em que as pessoas vão lá e lêem textos. Fui lá com o propósito de ler esse escrito para sair da minha zona de conforto e expor-me. Gostei de ler, as pessoas gostaram, e é um texto no qual estou a sangrar e sei disso. E por isso é que tu sentes isso. Correu bem e fez-me sentido passar esse texto para o microfone. Foi assim que surgiu o “Funny Hand”.
João Girbal: O “Cepa Torta” também tem muito a ver com isso. Foi uma música muito difícil de construir, porque para tornarmos as coisas mais interessantes, começámos a tocar aquilo num tempo que para nós não era natural e exigiu um pouco de esforço técnico para conseguir tocar a música bem. Na altura de construir a letra, lembro-me que estávamos a falar com o Bicudo e começámos a pensar em conceitos, ou ideias que fizessem sentido para nós. Uma coisa em comum, até para o Bicudo, foi a necessidade que nós temos de nos guiarmos por alguma ideia que nos mova, algo maior do que nós, que nos faça sair da cepa torta e quebrar a inércia. Por causa desta conversa o Bicudo lembrou-se da frase: “noutro dia, de outra forma, a mesma ideia”.
Zé queres desenvolver o que é que entendes quando dizes: “as cartas que nos são dadas para viver e que nos vão impedindo de voar”?
Zé Salgado: Isso tem a ver com o “Funny Hand”. Funny Hand tem a conotação de uma mão de um jogo de cartas. É aquilo que nós temos. Nós nascemos com o corpo, o cérebro e a família que temos e às vezes podemo-nos sentir limitados e condenados ao que nos é dado. Quando escrevi esse texto eu sentia isso. Tenho estes problemas, vivo aqui, e tenho de lidar com isso. E sentia que isso facilmente gerava ideias que me faziam acreditar que “as cartas que me foram dadas para viver” é que não me permitiam voar e alcançar os meus sonhos.
De que forma é que o João Fragoso orquestrou e desbloqueou os vossos processos criativos durante a criação do Farsa?
Janito: Acho que o João é um músico muito mais experiente que todos nós. Conhece-nos a todos muito bem. Por outro lado, está um bocadinho mais fora da banda do que o Bicudo, portanto tem uma perspetiva mais aérea. Além disso, tem sempre a capacidade de ver a luz ao fundo do túnel, especialmente quando nos estamos a enterrar num buraco. Ele diz-nos: “Não malta, é só irem por ali” e consegue simplificar tudo. À partida, o Fragoso tem sempre razão. Há uma confiança cega, que de uma maneira ou doutra, leva toda a gente na mesma direção.
António Jordão: O João acompanhou-nos num retiro e nas gravações do Farsa. No fundo, fez um canivete suíço da criatividade num quadro em branco, que encheu de ideias. O Fragoso ajuda-te a procurares a tua voz e a encontrar maneiras de ser criativo, sem ir pelo lado técnico. Como é que desbloqueias processos e encontras o teu som, sem estar a estudar arpejos, escalas e conteúdo mais técnico. Achamos que às vezes não conseguimos fazer certas músicas por falta de técnica, e que isso é um impedimento e ele mostra-nos o contrário.
Como é que surge a vossa música “The March Of The Silver King”?
Zé Salgado: Realmente é a música que cabe menos com as outras, é a “wild card”. Nos concertos sempre sentimos isso, é um choque para a plateia. Para nós fez todo o sentido acabar o EP com o “ace of spades”. É uma história fantástica que foi escrita por um grande amigo meu da Suíça, Gwyn William Glasser, que atuou connosco no Super Bock em Stock, o ano passado. Ele é uma pessoa muito teatral que sempre adorou tudo o que é literatura de fantasia.
Janito: No Super Bock convidámos o Gwyn, o Bicudo e o Fragoso, para subirem a palco connosco, que são pessoas que tiveram algum impacto nos Manteau, e agora estamos a perceber que o Gwyn teve mais impacto do que apenas escrever essa letra. Ele tem uma tradição de teatro e estudou expressão dramática, onde aprendeu exercícios que os atores fazem, que têm a ver com relaxar o corpo, sentires a tua presença e a dos outros, estares conectado e habitares o teu corpo e não apenas a cabeça. Fizemos isso antes do concerto, foi muito fixe e resultou. Sempre que temos a oportunidade, temos feito isso.
“The March of the Silver King” dos Manteau, intrepretado por Manteau and Gwyn William Glasser.
Filmado por João Salgado.
Vou ler-vos dois versos vossos e vou vos pedir a cada um para dizer a primeira palavra que vos vem à cabeça quando pensam nestes versos:
“It is almost time to go. No one knows. And no one cares what we are doing over here.”
António Jordão: Vou dizer Brasil, porque é daí que a inspiração veio. Música Brasileira.
Janito: Processo.
Zé Salgado: Conforto.
Girbal: Urgência.
“Pensamento não está isento e faz reflexo. Há algo em falta e também há algo em excesso”.
Girbal: Feedback.
Zé Salgado: Insónia.
Janito: Intrusivo.
António Jordão: Procura. Estar sempre à procura de algo e nunca o encontrar.
Vou ler-vos dois versos vossos e vou vos pedir a cada um para dizer a primeira palavra que vos vem à cabeça quando pensam nestes versos:
“It is almost time to go. No one knows. And no one cares what we are doing over here.”
António Jordão: Vou dizer Brasil, porque é daí que a inspiração veio. Música Brasileira.
Janito: Processo.
Zé Salgado: Conforto.
Girbal: Urgência.
“Pensamento não está isento e faz reflexo. Há algo em falta e também há algo em excesso”.
Girbal: Feedback.
Zé Salgado: Insónia.
Janito: Intrusivo.
António Jordão: Procura. Estar sempre à procura de algo e nunca o encontrar.
Que importância é que os retiros em Santa Cruz têm para vocês e para a banda?
António Jordão: Quando começámos a levar a música mais a sério, começámos a fazer retiros para compor, para tocar e para descansarmos. Eu perguntei ao meu avô se podíamos usar a casa dele em Santa Cruz, e ele sempre incentivou que nós fossemos para lá fazer música e divertirmo-nos.
O retiro é sempre importante para nós. Vir ao estúdio para ensaiar durante três horas não funciona. Temos de ter espaço, tempo e disponibilidade para que as coisas se comecem a libertar e para que façam sentido.
Janito: Nós já percebemos que no estúdio não nasce muita coisa. Não sei se é do espaço, se é da falta de luz, não sei do que é que é. Estarmos decididamente três ou mais dias todos juntos na mesma casa proporciona uma criação mais frutífera. A criatividade funciona bem quando há algumas limitações. O facto de termos três ou quatro dias definidos, num determinado espaço, com um certo objetivo, facilita a criação. Sinto que às vezes é preciso entrar nestes momentos de uma forma profunda e entrar nesse espírito demora tempo. É difícil trabalhar o dia inteiro como o Girbal faz das 9h às 17h e depois vir ensaiar e compor uma obra-prima.
Para terminar, qual é que é a importância do surf para o vosso dia a dia e equilíbrio?
Janito: Para mim é só uma ambição, porque nunca surfei, mas ele estão a dar-me muita vontade de experimentar.
Zé Salgado: O surf para mim assume os vários papeis dos quais falámos relativamente ao verso “noutro dia, de outra forma, a mesma ideia”. O surf pode tapar buracos. Num dia posso estar ansioso, não sei o que fazer, estou em baixo, vou surfar e saio da água muito mais bem-disposto. Pode ser um surf com amigos, mais familiar, que tem a componente social, mas também pode ser um surf mais sério e desafiante, com altas ondas e mais pesadão.
João Girbal: Sempre que vou surfar, independentemente de estar a ter o dia mais merdoso de sempre, sei que vou sair do mar mais feliz. Mesmo que seja um surf de merda. Quando vou ao mar, volto muito mais aliviado. Não me lembro de pensar noutros problemas enquanto estou a surfar. É uma hora zen. Para mim alivia-me muito em certos momentos da minha vida.
António Jordão: O Surf é uma arte e transmite muito da personalidade de uma pessoa. É fácil ver isso quando já tens alguma experiência. Meio que consegues estudar uma pessoa pela sua maneira de surfar. O que o surf nos dá a nós, é uma “linguagem” comum. O core do nosso grupo vem do surf, logo há ali uma “linguagem” que toda a gente sabe falar e as características e valores das pessoas estão por ali. É fácil comunicar.
Outra coisa que acho que o surf tem tal como a música, é que em qualquer dia podes sair de lá irritado e humilhado ou a sentires-te o melhor surfista do mundo, como às vezes sentes que és o melhor músico do planeta. Acho que estares exposto a esse espectro de experiências, que tanto a música como o surf proporcionam, é bom. Porque sentes coisas que se calhar não sentirias se não os fizesses. Leva-te a extremos, e obriga-te a lidares com situações desconfortáveis, das quais tens de te desenrascar. Estou sempre à procura de estar presente, que é algo no qual eu tenho dificuldade. E no surf acabas por estar presente porque é obrigatório em certas situações. Quando estás a surfar não estás ativamente a pensar, estás apenas presente, sem preocupações ou divagações, e é fixe conseguir atingir isso de vez em quando.