“A arte tem de partir de uma conversa muito própria do artista para com ele mesmo. E essa conversa interior isola-nos do mundo. ”
Publicado no dia 3 de Junho de 2023
Nuno Rodrigues é um artista multifacetado. É mais conhecido por Wugori, embora também possa ser reconhecido como Juice Manuva. Wugori é introspetivo, solitário e sincero e flui sobre instrumentais cheios de sentimento e emoção. Já Juice Manuva é uma personagem energética, gabarolas e extrovertida que rima sobre instrumentais de trap. O Nuno transpira criatividade e tudo o que ele põe cá fora é feito com o maior dos cuidados. Hoje apresentamos-vos o Wugori.
No final de março entrevistámos o Nuno. Encontrámo-nos no seu estúdio, um pequeno sótão onde reina a paz, cujas paredes estão forradas a desenhos e pinturas feitas por ele. Ao longo de uma hora conversámos sobre a vida, falámos sobre passado, presente e futuro e aprendemos um pouco mais sobre o Wugori. Esperamos que gostem de ler esta entrevista.
Recomendamos que tenham o Spotify do Wugori aberto ao vosso lado enquanto leem a entrevista, para que possam ouvir qualquer uma das músicas mencionadas, se o desejarem.
Olá Nuno, fala-me um pouco sobre a tua infância.
A minha infância foi muito importante para mim. Coisas que aconteceram quando era miúdo moldaram a maneira como trabalho e sou. Passei pelo divórcio dos meus pais, amigos que fui perdendo e que eram muito importantes para mim, que foram saindo e voltando à minha vida. Desde cedo que tive de lidar com perdas e tive de aprender a reestruturar-me.
Tudo isso obrigou-me a ir-me definindo, a ir percebendo quem é que eu era e o que é que estava aqui a fazer. Ao longo dos últimos anos sofri várias transformações que resultaram em que eu começasse a usar a minha arte como forma de me curar a mim mesmo, mas também para ajudar os outros.
De que forma é que a música entrou na tua vida?
Ouvia muita música quando era mais pequeno. Lembro-me de ouvir música na aparelhagem dos meus pais e de brincar com os botões de volume. Quando tinha cerca de 11 anos, vi pela primeira vez um computador com o Virtual DJ aberto e fiquei completamente estupefacto com aquilo. Pedi aos meus pais para me arranjarem o Virtual DJ no computador e comecei a brincar com ele. Uns tempos depois comecei à procura de softwares para fazer música e foi aí que começou a minha jornada.
Começaste a mexer com programas de música com 12/13 anos, mas só quando tinhas 18/19 é que começaste a lançar música. No início, estavas reticente em partilhar a tua arte?
Andei muito tempo com aquela ideia de que ser artista ou fazer música estava num patamar muito mais acima do que aquele onde eu estava. Estava só a aprender e tinha de me estabelecer de alguma maneira. Inicialmente comecei por produzir house e eletrónica. Só mais tarde é que fui apresentado por um primo meu ao J Dilla, Madlib e ao Hip Hop em geral. Nesse momento pensei: “Eu preciso de aprender a meter esta alma na minha música”.
Nessa altura eu comecei a tentar produzir Hip-Hop, e a fazer umas experiências que ia mostrando aos meus amigos. A Wu foi uma dessas experiências. Trabalhei muito com amigos meus que queriam rimar. Fazia instrumentais e vinha aqui para casa com eles gravar com microfones de computador que não valiam nada.
Só mais tarde na faculdade é que lancei a beat tape GURILA cá para fora. Foi o meu primeiro projeto em que eu achei que tinha atingido uma sonoridade que merecia ser partilhada com o mundo. Não estava com muita esperança, mas estava mais à vontade para mostrar as minhas coisas e para assumir o meu trabalho artístico.
Estudaste Design na faculdade certo?
Eu tirei um curso de música antes de estudar design. Fui para a ESMEL tirar um curso de Engenharia de Som no qual aprendi imenso sobre produção, mas que também tinha cadeiras de acústica, o que envolvia matemática pesadona. A mim interessava-me mais a parte criativa de criar música do que estar a perceber a parte eletrônica e acústica da música. Então acabei por desistir do curso.
Nessa altura estava indeciso entre ir para a ETIC tirar um curso de produção, ou seguir uma direção mais criativa. Achei que não valia a pena ir para a ETIC porque já tinha aprendido muito no meu curso na ESMEL e no fundo aventurei me pelo Design de Comunicação na Lusófona, que era uma área que eu desconhecia, mas que decidi seguir para alimentar o meu lado criativo.
O que é que dirias que retiraste de mais importante do curso de Design?
O curso deu-me muita esperança. Ao longo dos meus anos no liceu e no secundário sempre tive vontade de fazer cenas criativas, nunca tendo assumido essa direção. Ir para design fui eu dizer a mim mesmo: “Tu consegues fazer isto. Tu também consegues estar associada à arte e consegues desenvolver projetos giros”. Da forma que acabei por ficar apaixonado por ilustração e muito mais à vontade em expor o meu trabalho.
No fundo, o curso ajudou-me a compreender o que é que um artista ou um designer fazem. O medo que eu tenho de não ser capaz de fazer as coisas foi sendo eliminado com essa aprendizagem, conhecendo outros designers, outros professores e o seu trabalho. Isso deu-me uma liberdade enorme para pintar quadros e fazer desenhos. Como artista, eu já não tenho aquele medo de vir do zero e de isto ser só um hobby. Já estou mais à vontade para me assumir no mundo do trabalho.
Li que a tua escrita parte de ti, da sinceridade, das tuas vivências, traumas e sentimentos. Mas de onde parte a tua produção e beatmaking?
A minha produção tem duas vertentes. A técnica e a emocional.
Sinto-me um camaleão às vezes. O importante é inspirar-me com algo. Tentar compreender a técnica ao máximo e guardar esse conhecimento para usar no futuro. A minha produção parte de tentar desafiar-me a aprender e dominar técnicas que eu não conheço, que me permitem explorar outros géneros musicais e que poderão vir a ser mais-valias no futuro. Vem muito do consumo de artistas, e de arte.
Quando começo a fazer uma melodia, sei que ela está acabada quando me está a passar a emoção que eu quero. Normalmente é assim que sei, se as coisas estão a resultar ou não. Se me está a passar emoção, ótimo. Se não, é porque ainda há ali um espacinho para ser ocupado ou alguma coisa tem de ser retirada. Essa conversa que tenho com a música, em termos de sentimento, o que é que uma melodia me faz sentir ou não é muito natural para mim.
Em 2019 lançaste o teu primeiro EP Ciclo Das Duas Cobras. Passados alguns anos do lançamento deste disco gostava de saber o que é que sentes em relação a um certo verso e porque é que o escreveste em primeiro lugar: “O tempo passa, mas o Tico já não passa fome”.
É sobre o Tico. Para mim a relação com os animais e com a natureza é algo super importante. Além das relações com as pessoas, família e amigos, muitas vezes a forma como tratamos os animais diz muito sobre quem é que nós somos e como é que nos comportamos. Esse verso pretende homenagear a importância da natureza e dos animais na nossa vida. O Tico era uma chinchila que eu amava muito e que também me fazia companhia. O amor é nos dado das mais variadas formas e nós temos de saber valorizar isso. Os animais nunca nos julgam. Seja o que for, é um amor tão diferente, que nos toca em sítios tão diferentes que é preciso falar, escrever sobre ele e marcá-lo no tempo. É amor e gratidão que eu guardo nas músicas, para nunca me esquecer.
A Chinfrim Discos editou o teu primeiro EP. O é que levaste dessa experiência?
É uma sensação incrível. Por muito independente que eu queira ser, alguém chegar ao pé de ti e dizer-te: “Nós temos uma editora e achamos que és um artista que merece um lugar na nossa casa” é uma validação enorme. E é um quentinho no coração gigante. Foi o Dragão Incógnito, um amigo meu da escola, que me chamou pela primeira vez para tocar ao vivo e foi assim que eu conheci o pessoal da Chinfrim. Quando a arte é sincera e toca nas outras pessoas, elas mostram apoio e carinho. É das melhores coisas que pode haver no mundo.
A Chinfrim acompanhou todo o processo do EP desde o início, apoiaram-me sempre e organizaram vários concertos. Eles terem vindo ter comigo e terem aceitado abraçar um projeto que ainda não existia foi muito importante para eu me sentir confortável com a minha arte e em assumir o meu espaço como artista.
Mal Passado Bem Pensado – Wugori.
Em 2021 lanças o teu segundo EP Mal Passado Bem Pensado. Passaste tão mal a fazer este disco que podes dizer com 100% de certeza que foi um projeto bem pensado?
Isso é muito bom. (Nuno ri-se.) Há uma mania no Nuno, de ter de passar mal para que as coisas corram como deve ser. Eu tenho de ir à procura de dor cá dentro e de coisas que não estou a ver para que as minhas letras e a músicas que faço sejam sinceras e toquem nos outros. Portanto, há essa noção de ter de me esfalfar para que possa mais tarde dar mérito ao meu trabalho.
Neste projeto, acho que já havia um Nuno mais crescido no que toca a assumir as dificuldades e que já lidava melhor com a dor. Hoje em dia, tento afastar-me um bocado do conceito de ter de me sentir mal para as minhas músicas fazerem sentido para mim.
Neste projeto tu limitaste-te à escrita, enquanto o gonsalocomc tomou conta da produção. Já afirmaste que isto foi bom porque desta forma pudeste-te focar no processo da escrita, que era algo que nunca tinhas feito. Antes conciliavas sempre a produção com a escrita, mas já disseste que isso às vezes podia ser algo caótico. Porquê?
É muito difícil fazer tudo sozinho. Torna-se difícil por causa do julgamento interior sobre aquilo que estou a fazer. É muito fácil parar um processo criativo, começar a julgar o meu trabalho e ficar bloqueado na produção. Sou demasiado perfecionista nesse sentido.
Como foi o Gonçalo a produzir os beats, eu deixei que os instrumentais me dissessem o que é que eles queriam. Nesse sentido, é uma libertação muito maior, porque eu estou só preocupado com aquilo que o beat me está a fazer sentir e para onde é que me está a levar emocionalmente para eu conseguir narrar a história que quero. O Gonçalo ajudou-me a descobrir que eu conseguia estar bem em instrumentais de outras pessoas. É algo muito saudável, que tenho gostado muito de fazer.
Terminas a música “Era bom” com um sample da última entrevista da escritora brasileira “Clarice Lispector” antes desta ter morrido, na qual lhe é perguntado “A partir de que momento, de acordo com a escritura, o ser humano vai se transformando num triste solitário?” ao que Clarice responde “Isso é segredo. Desculpe não vou responder”. Porque é que escolheste este sample em específico para dar início à música “Jerónimo”?
Isso partiu do Gonçalo. Já coloquei essa questão a mim próprio várias vezes. Gosto de me questionar qual é que é o propósito do artista e a partir de que momento é que o artista se vai perdendo e isolando naquilo que faz. Identifiquei-me muito com esse sample.
A arte tem de partir de uma conversa muito própria do artista para com ele mesmo. E essa conversa interior isola-nos do mundo. Por muito que me exponha na minha música, não quer dizer que as pessoas vejam de facto o mesmo que eu vejo. E isso isola-nos um bocado. É isso que eu retiro dessa frase. Mas não te consigo dizer o propósito desse sample, porque não fui eu que o pus lá.
Na música “Jerónimo” cantas “Solidão faz-me ser miúdo”. Não te faz sentir graúdo?
A vida tem imensas coisas que são duas faces da mesma moeda. A solidão acaba por ser um bocado isso. Quando estamos em baixo, sentimo-nos uma criança sozinha e indefesa e quando estamos bem connosco próprios, a solidão faz nos sentir que podemos fazer tudo, conseguimos ultrapassar tudo e que não temos nada a perder.
Nessa música, a solidão, o sofrimento, faz-me sentir uma criança porque é o trauma a voltar, é a criança com dor que sinto cá dentro, quando me vou abaixo. É quem sofreu, quem precisa de amor, quem às vezes não consegue aceitar. E isto sou um bocado eu a assumir para com toda a gente a minha história, esse lado meu, e perceber que posso cair nisso, viver isso e que é normal isso acontecer.
No teu Instagram há dezenas de referências à personagem fictícia Sonic. Porque é que este boneco é tão importante para ti?
O Sonic foi a minha primeira paixão com algo que não existe. Foi permitir-me a mim próprio apaixonar-me por um boneco de uma realidade que não era a minha e que nunca iria existir no mesmo sítio que eu. Amar o espaço onde ele vivia e viver dentro daquele mundo.
O Sonic representa o acreditar nessa magia e o não ter medo de nos apaixonarmos por coisas que são abstratas, que não são reais nem práticas e que não têm uma raiz sólida. Esse objeto que toda a gente sabe que nunca vai existir porque é um boneco e uma personagem. Mas valorizo esse amor pelo imaginário e pelo mágico, que muitas vezes ajuda as pessoas a enfrentar coisas.
Além de produzires para ti, também já produziste para outros artistas, por exemplo o Mura e o Subsolo. Como é que compararias o processo de produzir para outros artistas ao invés de o fazer para ti?
Quando estou a produzir outros artistas sinto-me em casa. Nesse sentido, consigo ter uma conversa, consigo explicar às pessoas o que é que se calhar ficaria melhor ou não e sou capaz de desenvolver um produto. É muito mais fixe. Adorava pegar numa banda, colocar cada um no seu sítio e encontrar talentos em cada membro porque gosto imenso de ler as pessoas, os seus talentos e descobrir como é que se expressam musicalmente. Quando estou a produzir alguém, meio que sei o que esperar. Portanto, parece que estou a pintar um quadro e que as pessoas são cores que manipulo para chegar à pintura final.
Quando sou eu a produzir para mim, é como se tivesse uma tela em branco à minha frente, que posso pintar de tantas maneiras e cores diferentes que me perco. Aí a situação complica um bocado.
Como é que consomes cultura?
Isso é daquelas coisas que eu não devia falar, porque eu sou das piores pessoas a consumir cultura. Sou muito crítico. Gostava que houvesse espaço para que as pessoas se esticassem além daquilo que elas já são e estão definidas. Quero ver mais experiências. Eu próprio cansei-me um pouco de ouvir hip-hop. Portanto, agora ando a tentar ouvir e explorar géneros diferentes.
Juice Manuva é o alter ego mais traquina e infantil do Nuno. Com esse alter ego também exploras outros géneros musicais como o Trap que nem sempre exploras com o Wugori. O que é que te fez sentir a necessidade de criar o Juice Manuva?
O Juice Manuva aparece por eu ter de arranjar ferramentas para lidar com a exposição que surgiu quando me apresentei como Wugori e com a pressão que punha em cima de mim em relação ao próximo passo. Sinto que estava a olhar para a tela em branco, mas não me estava a sentir livre o suficiente, nem me estava a sentir feliz enquanto criava.
O Juice Manuva nasce no sótão, que é o meu quarto e estúdio, e do facto de ser um local seguro, tanto para mim como para os meus amigos. Usei os meus amigos, no sentido de estarmos aqui juntos, animados, a fazer música e tentar mostrar que nos podemos divertir e fazer arte, sem nos estarmos a condicionar. E ela não precisa de vir do poço mais profundo que temos cá dentro. Juice Manuva vem celebrar essa amizade e esse meu lado mais tótó, que não pensa tanto sobre aquilo que está a fazer, e que tenta divertir-se durante o processo e viver o momento.
“Trata” – Wugori.
Recentemente participaste na música “Tontura” do novo álbum Latência do xtinto. Também expuseste um quadro teu na exposição realizada na festa de lançamento do disco. Quão importante é para ti o ato de pintar?
O ato de pintar é incrível para mim, porque se estou constantemente a analisar e a julgar o meu trabalho musical, na arte e na pintura, não me importo nada de ser a maior criança e o pior pintor do mundo. Porque faço-o para me libertar de tudo o que tenho aqui dentro. É uma liberdade enorme fazer um risco e esse risco dizer-me o que é que vem a seguir. Deixar algo no mundo sem sequer pensar no que é ou dar-lhe um nome.
Há alguns anos que tens vindo a anunciar o lançamento “do álbum”. Álbum esse do qual já me falaste. Porque é que se tornou um processo tão demorado?
Tenho muita música feita, passo o ano todo a produzir e tenho centenas de demos que vão ficando para trás no computador.
Acho que estou a pôr uma pressão enorme em cima de mim, para que o álbum seja o mais perfeito possível. Sinto que tenho muitos géneros na mão, e o que está a demorar mais para mim é juntar o puzzle de como é que vou montar um projeto tendo tantas possibilidades em cima da mesa. Tenho medo do compromisso que implica assumir determinado projeto como o meu primeiro álbum.
E claro, há sempre a componente mega importante de eu me sentir satisfeito com o que fiz. Se eu vou fazer outro projeto tem de estar bem feito. Não vou apressar nada. Tudo leva o seu tempo.