Entrevista Narciso

“O ano 2022, que deu nome ao álbum, acabou por parecer uma residência artística alongada por vários sítios e vários palcos, onde estive a testar as minhas músicas e a perceber em que sítio é que estava a minha voz. ” 

Publicado no dia 2 de Setembro de 2023

Vasco Narciso é Narciso. Quando era mais novo não ligava à música, foi desportista de alta competição e uns anos depois quando tinha ideias de seguir economia no ISEG, largou todos os seus planos para investir no Hot Clube Portugal, para mais tarde estudar Jazz no conservatório de Amesterdão. Romântico na música e na vida, começou por escrever música instrumental, só mais tarde tendo começado a experimentar com a voz. Guitarrista inato, foi desenvolvendo a sua sonoridade muito particular à volta deste instrumento. Hoje, Narciso é um nome bastante regular no meio musical lisboeta, que para muitos, representa o que é ser uma alma livre e independente, que tem um amor tremendo pela música, e que não desiste de perseguir a sua sonoridade.

No dia 26 de maio, poucos dias antes do lançamento do seu álbum de estreia, 22, encontrámo-nos os dois na Gulbenkian e conversámos um pouco sobre tudo. Foi uma tarde muito agradável, que resultou nesta entrevista que foi um prazer escrever. Esperamos que gostem.

Recomendamos que tenham o Spotify do Narciso aberto ao vosso lado enquanto leem a entrevista, para que possam ouvir qualquer uma das músicas mencionadas, se o desejarem.

Vasco, tanto tu como o teu irmão cresceram em Santo Amaro de Oeiras e mais tarde tornaram-se ambos criativos e artistas. Que influência é que os vossos pais tiveram nisso?

Isso leva-me ao tópico de ter crescido em Santo Amaro. Se não fossem os meus pais, nós dificilmente teríamos seguido este caminho da forma comprometida e ambiciosa como o fizemos. Eu e o meu irmão tínhamos uma guerra com os meus pais, quando vivíamos em Santo Amaro, que era ir a exposições a Lisboa. Eles vinham muito a Lisboa, à Gulbenkian onde nós estamos, ao CCB, a galerias de arte, a concertos de música clássica, jazz e opera e eles obrigavam-nos a vir com eles sempre, e para nós Lisboa era horrível. Era um bicho de sete cabeças, longe de tudo e todos. Ter de sair de Oeiras, para passar um sábado ou um domingo a Lisboa era um inferno e nós fazíamos imensas birras, mas eles diziam-nos sempre: “Um dia vocês vão nos agradecer”. 

Por volta dos meus 16 anos, começámos a crescer e a compreender que aquilo fazia sentido, e muito provavelmente, o facto de termos passado tanto tempo a ver arte, implantou umas sementes que ao começarmos a estudar, eu música e o meu irmão fotografia, fizeram que tudo começasse a fazer sentido.

O teu primeiro projeto a solo chama-se Anticorpo. Já o descreveste como uma vacina contra os teus pensamentos e como o resultado de quereres descarregar a raiva e tristeza que ia dentro de ti nessa altura. Como é que um grito de raiva consegue ser tão bonito?

As músicas do Anticorpo parecem que foram escritas para mais tarde as ouvir e ficar melhor. Mas nunca as escrevi com essa intenção. Nunca quis escrever algo leve que me acalmasse. Fui escrevendo música, que estava orientada pelas referências que tinha na altura e o que andava a ouvir era jazz fusão alternativo e indie jazz, que me deixava confortável e bem. O Anticorpo é uma tentativa de fazer a mesma música que as pessoas que eu ouvia faziam.

O processo de descobrires o que é que querias apresentar para a tua estreia como Narciso foi difícil? 

Quando escrevi as quatro músicas do Anticorpo, não pretendia lançá-las. Essas músicas fizeram parte do exame final da minha licenciatura no conservatório de Amesterdão. O exame final consistia numa série de trabalhos que nós tínhamos de fazer, entre elas uma composição de jazz e outras peças. Perguntei ao meu professor se em vez de fazer isso tudo, podia apresentar quatro composições, temas meus, que tinha escrito e gravado, que não eram necessariamente jazz. Surpreendentemente o conservatório acedeu ao meu pedido, mas insistiram que eu também tocasse as outras peças de jazz a solo na guitarra, parte na qual sou péssimo. Além disso, também apresentei uma banda sonora que fiz para um filme de animação da Marta Pinto e que considero um dos trabalhos mais fixes que fiz. 

Em “My One” cantas pela primeira vez. Foi libertador também poderes usufruir da voz para te exprimires?

Não. Foi um stress. O “My One” é uma canção que meti na cabeça que tinha de fazer. Alguém me disse “A tua música é muito fixe, mas como não tem voz não consigo vendê-la”. Comentários do género que eu ouvia na altura quando fazia música instrumental. “A música é fixe, muito fixe. Mas porque é que não tem voz?”. Portanto meti na cabeça que tinha de fazer uma música com voz. Apesar de achar que a melodia é bonita, não consigo ouvir a minha voz nessa música. Acho que está mesmo ao lado. E acabou por ser impulsionado por uma teimosia de “Ai é? Não me chateiem mais, vou fazer uma música com voz, só para vos satisfazer”. Foi algo forçado, mas não me arrependo porque abriu o caminho para eu começar a usar a voz. 

Antes de fazer a canção já imaginava ao que é que queria que a minha voz soasse e isso criou imenso conflito interior, porque não estava a conseguir chegar lá e fritei imenso. Com o “My One” tive imensa ansiedade, e quase que parti cenas a gravar aquilo. E tocar ao vivo, e ensaiá-la foi um pânico. Nunca consegui ouvir uma gravação minha a tocar aquilo do início ao fim, sem desligar a meio. Tanto que deixei de apresentar essa música ao vivo por uns tempos.

Fizeram um vídeo lindo para a música. Qual é que foi a ideia por trás da areia no chão do quarto ou por trás da sala com mobília torta e com as paredes pintadas às riscas?

Pois, o videoclip é a parte realmente fixe do “My One”. Eu estava muito compenetrado na música e o meu irmão e o Vercesi disseram que queria fazer um videoclip para a canção.  Foi um projeto que partiu 100% deles, que eles quiseram fazer porque ouviram a música, e gostaram dela. Eles estavam sempre a cantá-la e tiveram a ideia de fazer aquele vídeo surrealista e sem nexo nenhum. Um quarto em que o chão é de areia, uma sala em que os móveis estão pendurados no teto e está tudo a cair, outro ambiente em que temos o frigorifico pintado e quase camuflado com a parede e abre-se e eu estou todo nu dentro do frigorifico. São cenas estranhas e incríveis. 

A música fala sobre o facto de eu estar a pensar em alguém de quem gosto, mas essa pessoa não só não está presente fisicamente como não está presente espiritualmente e não estamos bem ligados. Quando estás nesse estado de espírito, é normal as coisas banais perderem um bocado de cor, e o interesse que costumam ter. Se as cadeiras da sala onde estás, estiverem penduradas no teto e viradas para baixo nem ias reparar. Não ias estar para aí virado. É assim que eu interpreto o videoclip.

Há quem componha música em casa e só depois a apresente ao vivo. Tu tocas as tuas demos ao vivo, e só depois é que as finalizas em casa. Porquê?

Essa é no fundo a história do 22. Com o “My One” eu fiz composição, gravação, produção, publicação e apresentar ao vivo tudo de seguido. Foi um processo do qual não gostei nada, porque parecia que a música não respirava. Além disso, aquilo que resulta a tocar com uma banda, só vais saber quando tocares com essa banda, e só vais saber se resulta num concerto quando deres um concerto. 

Depois de lançar o “My One” em novembro de 2021, decidi que não queria fazer mais música assim. Escrever a música, gravar e tentar reproduzir ao máximo aquilo que foi gravado. Vou só escrever música, levar para os ensaios e ir tocando nos concertos. E foi muito fixe. O ano 2022, que deu nome ao álbum, acabou por parecer uma residência artística alongada por vários sítios e vários palcos, onde estive a testar as minhas músicas e a perceber em que sítio é que estava a minha voz. 

Quando cantei pela primeira vez o vivo não foi nada natural para mim. Precisava mesmo de descobrir algo sobre a minha voz e ainda estou a fazer essa jornada, e sinto que estou um bocadinho mais próximo daquilo que acho que é a minha forma de usar a voz. Várias vezes foi assustador e humilhante por ter cantado tão mal, mas tem sido uma jornada importante. 

O 22 é composto por músicas que escrevi no ano passado sobre episódios e estados de almas diferentes ao longo da minha vida. Este projeto acabou por se tornar num exercício de procura pela minha forma de escrita e pela minha maneira de usar a voz. 

“My One” de Narciso.

Filme do Francisco Narciso e Pedro Vercesi.

O teu irmão já fez dois pequenos filmes chamados “Plástico” e “Frágil”. Foste tu que fizeste a banda sonora dos dois filmes. Também trabalhaste com o Francisco na campanha do Moda Lisboa de 2022. Como é que surge essa relação de trabalho?

O meu irmão e eu sempre fomos muito diferentes. Não tínhamos os mesmos amigos, não andávamos nos mesmo sítios e não tínhamos as mesmas ideias nem as mesmas referências. Quando comecei a estudar música e o Francisco fotografia, houve uma união imediata.  De repente, estávamos os dois a trabalhar em arte, e apercebemo-nos que ambos temos algo fixe a dizer e que se nos juntarmos potenciamo-nos imenso um ao outro. 

Trabalharmos juntos foi importante e tudo começou com uma primeira sessão fotográfica que fizemos no estúdio do IADE. O meu irmão estava a começar a fotografar e precisava de alguém que modelasse para ele e, portanto, fotografava-me a mim. Eu gostei imenso e ele adorou. Houve uma ligação imediata entre nós quando o Francisco se pôs atrás da câmara comigo no set. 

Tu divertes-te em palco?

Sim, mas é uma diversão que fica muito pelo palco. É por isso que acho que o pessoal se embebeda e droga a seguir aos concertos. Estás num hype tão grande que fica no palco e não volta contigo para o backstage. É uma mistura entre a diversão e um estado de transe em que ouves o som, sentes o som a sair para a plateia e sabes que és tu quem controla o que vai acontecer. Agora pensa, se gosto do som da minha guitarra numa sala de ensaio, imagina num palco.

Depois de qualquer concerto que dê, preciso de ficar sozinho durante um bocado. Falo com a minha banda, mas não gosto muito de sair logo para a multidão. Preciso de ter no mínimo 10 a 20 minutos nos quais bebo uma cerveja e fumo um cigarro sozinho só para voltar à terra. 

O 22 foi gravado ao longo de 2022 em Lisboa, Londres e Amesterdão. Que importância é que teve estares em diferentes cidades a gravar e compor este projeto? Foi catártico regressar a Amesterdão?

Estive três meses em Londres com o objetivo de estar numa cidade onde me pudesse concentrar melhor e onde pudesse estar no meio de oportunidades mais interessantes. Além de estar muito focado em acabar o álbum, conheci lá uma pessoa interessante para misturar o álbum. Em Londres o ritmo de trabalho é outro, e essa pressão fez-me bem durante esses três meses porque trabalhei no álbum todos os dias, de uma forma que não teria feito em Lisboa. Se estiver no mindset certo, esse ritmo estimula-me imenso. Todos os dias trabalhava e gravava muito. Foram os três meses nos quais aperfeiçoei e descobri mais coisas sobre a minha voz. Além disso, estar num ambiente em que o inglês é o meio de comunicação principal, estimulou e alterou muito a minha escrita.

Amesterdão foi mais uma estadia de reconciliação. Depois de tudo o que aconteceu quando estava a estudar em Amesterdão, eu achava que nunca mais ia querer pôr um pé lá. A dada altura, quando estava em Londres comecei a ficar um bocado com a corda ao pescoço porque comecei a ficar sem dinheiro e não conseguia arranjar os documentos para poder ter um trabalho legal. Nesse momento, estar em Londres começou a deixar de fazer sentido para mim, mas não queria ir já para Lisboa porque ainda precisava de mais um pouco de Europa, portanto decidi ir para Amesterdão sem pressa e sem rumo, onde fui muito bem recebido em casa do meu amigo Giacomo. 

O Giacomo é um ótimo baterista e eu andava há alguns tempos a pensar em gravar baterias para o 22 e, portanto, esta foi a oportunidade perfeita, porque o Giacomo tinha um estudo ótimo para gravar e tinha todo o tempo do mudo para estar comigo. Estive lá duas semanas nas quais voltei a ver os meus amigos que não via desde 2020, matei saudades, fiz as pazes com a cidade e gravei baterias.  Amesterdão foi perfeito e foi a fase final de captação do álbum. 

Mencionaste muito o uso de gravações artesanais neste projeto. Se não me engano estas gravações são pedaços do teu dia a dia que acrescentaste ao álbum certo? Com que intenção?

Isso vai um pouco de encontro com um projeto novo que estou a fazer, mas que ainda não percebi bem se é Narciso ou se vai ter outro nome. É um projeto voltado para uma cena mais cinematográfica. 

As conversas das pessoas do lado fascinam-me e adoro cruzar-me com a conversa de alguém quando passeio na rua. Interesso-me imenso por esses pedaços das vidas das outras pessoas que passam por mim e com os quais eu não tenho nada a ver, mas que podem dar um filme. Um filme no qual são as pessoas quem escrevem o guião e não eu. E não é só o que as pessoas dizem. É o barulho, porque quando tu gravas com o IPhone há todo um ambiente sonoro à volta. Seja um carro a passar, um avião, ou um copo e um talher a bater numa mesa. Imagino muita música nesses sons, nesse ritmo e gosto imenso de tocar por cima destas sonoridades. Neste projeto novo que estou a fazer, ponho áudios de pessoas a falar a tocar e depois improviso por cima. O 22, tem vários áudios que eu fui recolhendo. Na “Lounge” é mais evidente, na “You’ll Be Fine” tinha um áudio meu a lavar a louça, mas que foi retirado. A “Não” também tem um áudio de uma conversa de rua ao lado do Vago, em que uma amiga minha, a Carolina Fontes, estava a falar e eu decidi começar a gravar e foi mesmo no momento em que ela disse: “Eu tenho a certeza que nunca tinha estado apaixonada até hoje, mas agora estou”. Mas disse aquilo com uma direção e uma intenção perfeita e até o disco que estava a tocar no Vago tinha uma linha de flauta que encaixou perfeitamente no instrumental da “Não”. Na “Bye”, também se pode ouvir uma gravação minha a caminhar junto ao Alqueva. 

 

O Bandcamp é uma plataforma na qual qualquer artista pode vender a sua música e merchandise diretamente aos seus fãs. Ambos os singles “In My Head” e “Bye” foram lançados mais cedo no Bandcamp do que no Spotify, o que é algo pouco comum no meio musical lisboeta atual. O que é que te levou a tomar essa decisão? 

Eu pago e uso o Spotify, mas odeio o modelo de negócio que eles usam. Foi normalizado o consumidor normal pagar uma pechincha para ouvir quase toda a música que existe no mundo. Não acho que seja correto, especialmente para artistas como eu, que são jovens, não têm nada e precisam de alguma força para manter a motivação. Além de não teres nenhum retorno financeiro no Spotify, também não tens retorno humano porque não há interação com os fãs. Já no Bandcamp há interação, sabes quem é que te segue e o artista é como um utilizador que publica música, que pode fazer posts e interagir com as outras pessoas. Além disso, a plataforma tem programas de rádio, entrevistas e artigos. O Bandcamp, ao contrário do Spotify é uma plataforma para a música, pela música e para as pessoas que fazem e consomem música. 

Ao mesmo tempo, estou refém do Spotify. Se quero que as pessoas ouçam a minha música, tenho de a colocar lá. E há várias formas de contornar isso, mas eu não acredito que não pôr a minha música no Spotify seja uma solução, porque assim ninguém vai ouvir o que eu faço. No entanto, raramente partilho os meus links para o Spotify, e o link principal que eu partilho é sempre o do Bandcamp. 

Eu lancei o “In My Head” no Bandcamp antes de o ter lançado no Spotify e fiz mais dinheiro com uma só música numa semana do que fiz com o Spotify em três anos. Quando lancei a “Bye” no Bandcamp, estava no Alentejo e era domingo à noite. Fiz um post de Instagram a uma hora de merda, proibida para o algoritmo e na altura tive oitenta ou noventa likes e foi exatamente o número de plays que tive no Bandcamp. E isso significa imenso. Significa que eu tenho 80 pessoas que viram e leram o meu post, foram carregar no link e ouviram a minha música. Para mim essa é a beleza do Bandcamp, a transparência que existe entre os ouvintes e os artistas.

O Joaquim Quadros termina o press release do 22 com: “Assim como este disco, que diz tudo sobre o lado humano de um músico que onde melhor se encontra é a organizar-se a si mesmo nas canções.” Estás conformado com o eterno desconforto da vida?

Acho que é mesmo isso. De certa forma, todos os traumas pelos quais passei ao longo da vida, que me levaram a fazer muita terapia, estão-me a ensinar a lidar com o desconforto da vida. A verdade é que estou desconfortável há muito tempo. Às tantas, começas a pensar que a solução, em vez de ser não estar desconfortável e fazer 30 por uma linha para não estar, é assumir o desconforto. O desconforto é eterno e é normal. E também é uma fonte muito grande de criação e de muitas coisas bonitas na vida. Une as pessoas também e cria muita felicidade. Se não houver desconforto, também não valorizas tanto aquilo que é bom. É isso.

Podem encontrar o Narciso no Instagram.